Artrites infecciosas: quando os germes atacam.
Público alvo: leigo.
Infelizmente mesmo com os melhores cuidados de higiene estamos expostos a um sem número de agentes microbianos no dia-a-dia. Você sabia que há reumatismos secundários a infecções? Veja no texto abaixo, atualizado, publicado originalmente no livro Artrites & Reumatismos, do Grupo de Pacientes Artríticos de Porto Alegre.
“As artrites infecciosas se apresenta no momento em que uma bactéria, fungo ou vírus aloja-se e cresce dentro da junta. O agente infeccioso atinge as juntas de várias maneiras:
– consequência de um trauma
– cirurgia
– decorrente de um foco de osteomielite (inflamação do tecido interno do osso)
– um abscesso (bolsa de pus)
– prótese óssea infectada
– infecção de ferida na pele, e
– através da corrente sanguínea a partir de um foco de infecção em outro local à distância, como uma celulite (inflamação do tecido), infecção urinária, respiratória ou intestinal.
A multiplicação dos micróbios na cavidade da junta, dentro do líquido sinovial, é rápida e as células de revestimento da membrana interna da articulação tentam bloquear este processo digerindo os agentes, o que pode ocasionar a formação de abscesso. Este tipo de artrite na qual se encontra o agente no interior da articulação é aguda e será abordada neste capítulo. Há também um segundo tipo em que o agente infeccioso não é isolado na junta, agindo à distância provavelmente por reação imunológica, sendo conhecido por artrite reativa – esta veremos em capítulo específico. Apesar da efetividade dos antibióticos, a artrite séptica continua sendo uma séria causa de morbidade, mortalidade, dano às juntas e perda funcional.
Agentes infecciosos
Tanto bactérias ditas Gram positivas quanto Gram negativas são as principais causadoras de artrite infecciosa. Esta classificação conforme o teste denominado Gram diz respeito às características de coloração de um germe no laboratório, e você verá escrito desta forma no exame dito “bacterioscópico”. Os organismos Gram positivos causam 65 a 85% das artrites bacterianas, os Gram negativos causam 10 a 15% e menos de 5% são causados por aeróbios (bactérias que respiram oxigênio), anaeróbios (bactérias que não necessitam de oxigênio para viver), micobactérias e fungos.
Os Gram positivos do gênero Staphylococcus aureus (estafilococo dourado) são mais frequentes em crianças, juntamente com o Haemophylus influenza (Gram negativo). Em adultos jovens um germe bastante comum é o causador da gonorréia, Neisseria gonorrheae (Gram negativo). Os Gram negativos predominam em pacientes muito jovens, idosos, pacientes que sofreram trauma grave ou usam medicação potente imunossupressora como:
– transplantados
– doentes crônicos com insuficiência renal, anemia falciforme, lupus eritematoso sistêmico, diabetes, câncer, próteses em junta, artrite reumatóide
– usuários de drogas injetáveis, e
– pacientes com AIDS. A origem da infecção é comumente o trato urinário ou pele.
A infecção por anaeróbios se caracteriza por presença de odor fétido no líquido sinovial e ar no interior do junta. Os sítios primários a partir dos quais circulam tais germes incluem o abdômen, trato genital, abscessos dentários e sinusite.
Apresentação clínica
As juntas mais comumente comprometidas são:
– joelho (50%)
– quadril (13%), ombro (9%)
– punho (8%)
– tornozelo (8%)
– cotovelo (7%)
– pequenas juntas da mão e do pé (5%)
embora qualquer junta possa ser afetada. A maioria das infecções envolve uma única junta, mas 20% dos pacientes são afetados em mais de uma junta, podendo haver um quadro de processo infeccioso com febre, cansaço e perda do apetite. A articulação afetada geralmente apresenta inchaço, vermelhidão, calor, dor, sensibilidade ao toque e movimentação difícil.
Em crianças atinge uma única junta em 93% dos casos e um terço ocorre em menores de dois anos, costumando envolver grandes juntas dos membros inferiores. Os sítios de infecção primária são otites, pneumonias, cateteres umbilicais, punções venosas, meningite e osteomielite.
Em idosos, cerca de 40% dos adultos atingidos têm mais de 60 anos e 75% das infecções ocorrem em juntas já atingidas por artrose ou artrite (frequentemente quadril e joelho). Há correlação com diabetes (24%), câncer (19%), insuficiência renal (14%) e outras doenças como artrite reumatóide, lupus, doença pulmonar crônica e alcoolismo (14%). Em 75% dos casos há foco em infecção urinária, pneumonia e osteomielite. As bactérias que mais comumente causam problemas nesta faixa etária são os estafilococos, gonococo e bacilo da tuberculose.
Staphylococcus
A infecção por Staphylococcus é provavelmente a mais séria. Os germes tendem a se alojar em juntas previamente danificadas. Sendo assim, alguns pacientes são mais propensos. Em muitos casos não se sabe como a bactéria atingiu a junta. Apresenta a particularidade de a articulação poder ser seriamente danificada em pouco tempo como um ou dois dias, levando a sua destruição. É uma infecção aguda, que se desenvolve em horas ou dias, severa e com vermelhidão, inchaço e calor na junta. É comum que atinja uma articulação apenas, podendo atingir duas ou mais. As mais frequentes são as dos joelhos, seguidas do tornozelo, punho, ombro, cotovelo e quadril.
Os sintomas são proeminentes e facilmente identificados: febre e sensação de doença, com elevação dos leucócitos (elementos de defesa do sangue) e da velocidade de sedimentação globular (VSG). Outro exame útil é a cultura do sangue para identificar o agente infeccioso. O teste padrão é retirar líquido da junta, examiná-lo no microscópio e fazer a cultura para eliminar a possibilidade de gota ou pseudogota (artrite por cristais).
O prognóstico é bom se o quadro for tratado adequadamente. Se o tratamento é retardado a destruição do osso e semeadura de infecção para outras partes do corpo podem ocorrer, sendo que, sem qualquer tratamento, a doença pode ser fatal. Raramente o osso próximo da junta pode ser infectado causando ostemielite, que é uma complicação séria requerendo longo tratamento com antibióticos e até mesmo cirurgia.
Gonococcus (gonorréia)
Costuma-se pensar em gonorréia apenas como uma doença venérea. A artrite gonocócica é a mais comum causa de artrite em mulheres jovens entre 15 e 25 anos de idade. A artrite séptica ocorre em pequenas juntas das mãos, punhos, cotovelos, joelhos e tornozelos. A artrite gonocócica ou infecção gonocócica disseminada ocorre em indivíduos com vida sexual ativa. Durante a infecção genital a bactéria pode chegar ao espaço da junta através do sangue. Costuma-se desenvolver somente em determinadas partes do corpo como a uretra ou dentro de articulações.
O paciente costuma apresentar uma história de 5 a 7 dias de febre, calafrios, múltiplas lesões de pele (petéquias, pápulas, pústulas ou lesões necróticas), poliartralgia migratória e tenosinovite em dedos da mão, punho, dedos do pé e tornozelos, que evolui para mono- ou oligoartrite (artrite de uma ou até 4 juntas). Os indivíduos afetados podem não ter sintomas de infecção do trato gênito-urinário, sendo que 80% dos pacientes são assintomáticos nesta área do corpo. A mulher pode apresentar dor abdominal baixa. Estão frequentemente menstruadas ou grávidas, facilitando a migração da bactéria através da corrente sangüínea, do útero para outras áreas do corpo. É clássica a apresentação de artrite gonocócica após o parto, quando o traumatismo pelo canal de parto faz com que o gonococo atinja facilmente a corrente sanguínea e chegue a juntas distantes.
A artrite pode afetar uma ou várias juntas, não costumando atingir muitas juntas ao mesmo tempo. A mais afetada é a do joelho seguida da junta que articula o punho na região dorsal. Ocorre uma inflamação nos tendões e líquido sinovial que articula os dedos gerando a chamada tenosinovite (teno = tendão; sino = sinovial; ite = inflamação).
No hemograma (exame de sangue) uma elevação dos leucócitos pode ser observada, indicando que o organismo luta contra um processo infeccioso.
A artrite gonocócica regride sem danificar a junta se diagnosticada e tratada adequadamente. A maioria dos pacientes não sofre dano grave antes do tratamento com antibiótico, mas este deve ser realizado pois há possibilidade de dano. Em alguns dias a inflamação da junta diminui, podendo reacumular líquido por um período de semanas. Geralmente não há problemas residuais, a menos que o paciente seja reinfectado.
Tuberculose
Na junta é rara, especialmente concomitante com tuberculose pulmonar ativa (doença no pulmão). Somente 1% dos pacientes com doença pulmonar apresentam doença nas juntas. Uma história de tuberculose no passado pode estar ausente. O teste de pele (denominado intradermoreação de Mantoux, ou PPD) pode ser útil, mas se negativo não exclui o diagnóstico. A evolução é lenta no inicio, podendo levar meses ou anos até que seja feito o diagnóstico. Os sintomas de calor e vermelhidão, usuais sinais de inflamação, podem não estar presentes.
A doença comumente envolve uma junta como o joelho ou o quadril, nesta ordem de frequência, pois o bacilo necessita de amplos espaços para se desenvolver. Não atinge via de regra pequenas juntas, embora possa ocorrer em juntas da mão ou pé. A tuberculose na coluna é chamada Mal de Pott. O paciente apresenta uma corcunda em decorrência de deformidade da coluna na região torácica e um abscesso “frio” sem calor ou vermelhidão (sem sinais de inflamação), com fortes dores crônicas no local.
O diagnóstico se baseia na presença de bacilos na cultura do líquido sinovial em 80% dos casos. Nos restantes 20% a biópsia dos tecidos da junta será positiva. Nas radiografias e outros exames de imagem será observada destruição do osso próximo à junta nos casos mais avançadas. O prognóstico depende do diagnóstico precoce, podendo haver cura sem perda funcional. Se o tratamento for adiado, pode haver destruição da cartilagem e perda da mobilidade. Em pacientes com AIDS ou procedentes de áreas com história de epidemias de tuberculose, as manifestações de artrite devem ser bem avaliadas no sentido de fazer este diagnóstico.
Tratamento geral das artrites infecciosas
O tratamento objetiva a erradicação do agente infeccioso, prevenção da perda funcional e tratamento da doença primária. A seleção de antibióticos se baseia na idade, história clínica, focos de infecção extra-articular (fora da junta) e cultura do líquido sinovial. O regime inicial é muitas vezes modificado 1 a 2 dias após ser instituído, de acordo com o resultado da cultura enviada ao laboratório.
A duração do antibiótico será determinada pela resposta clínica. Os estreptococos e hemófilos costumam ser erradicados em 2 semanas. Os antibióticos intravenosos permitem uma concentração adequada no líquido das juntas para erradicar o agente, por isso a maioria dos casos requer hospitalizações, até porque evidência de sepsis (infecção generalizada, com febre e calefrios) é uma emergência clínica.
A artrite aguda não é tratada com sucesso somente com antibióticos, sendo necessário drenar o pus, lavar a junta e até mesmo desbridar cirurgicamente (retirar tecidos mortos), principalmente se coexistir osteomielite. A imobilização da junta pode ser inicialmente indicada mantendo a posição normal de função do membro afetado. Tão logo diminua a inflamação a fisioterapia deve ser instituída para fortalecer os músculos que garantem estabilidade da junta.
A artrite estafilocócica requer um longo tratamento, especialmente se a junta já era atingida previamente por artrose ou por artrite. O antibiótico de escolha é a penicilina ou, em caso de alergia, um antibiótico de espectro semelhante (que atinja os mesmos agentes com eficiência). O tratamento deve durar de 4 a 6 semanas. A artrite gonocócica é decorrente de uma doença venérea, por isso o parceiro sexual deve ser tratado. A penicilina é o tratamento de escolha, ou um antibiótico semelhante, por 7 dias, caso a pessoa relate alergia à penicilina.
A artrite tuberculosa pode exigir drenagem periódica do líquido da junta. A medicação é dada por via oral durante 2 a 3 anos. A melhora é observada nas primeiras semanas e é completa em alguns meses. O tratamento é longo para evitar recorrência, sendo feitio no Posto de Saúde. Vitamina B6 é acrescentada para se evitar neurite como para-efeito da isoniazida.
Outros agentes infecciosos
A artrite pode se instalar secundária a processos inflamatórios por vírus (Parvovírus B19, hepatites B ou C, raramente hepatite A, rubéola e HIV). Também pode ocorrer em decorrência de sífilis, lepra e brucelose. Os fungos, como paracoccidioidomicose e blastomicose, podem gerar artrite por disseminação através da corrente sanguínea, a partir de uma infecção pulmonar. O médico atento irá fazer este diagnóstico diferencial nos casos suspeitos de artrite infecciosa.”
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